Uma cidade partida
Matteo Gennari
1.
Moro no rio de Janeiro há quase 2 anos. Viajei para o Rio para curtir 2 meses de férias. Acabei ficando. Ainda viajei 2 vezes para Milão. Agora trabalho numa Ong na favela da Rocinha e dou aulas de italiano para a classe média carioca.
E escrevo.
“Como é perigoso o Rio de Janeiro. Me ligam dois caras me dizendo que são da policia, que são do esquadrão da morte. – Seu italiano burro, burro!-, assim me chamam, me contam que alguém mandou eles me matarem e se eu não pagar agora, “tem que ser agora!”, eles nem querem que eu desligue, tenho que ir ao banco e pagar agora, se eu não pagar eles vão me matar.
Me deixam o numero de uma conta corrente. Felizmente estou com meus colegas da Ong, quando recebo a ligação, e todo mundo se preocupa comigo. Todo mundo me conforta. Fico sabendo que sou vítima de uma extorsão típica, muito utilizada nessa temporada, aqui no Rio. Eles querem te aterrorizar ao telefone, assim você vai logo ao banco. Eu até falei que não tinha 5.000 reais (eles pediram 5.000 mil), e me perguntaram “Quanto você pode pagar?”, eu falei “1.000”, “Então paga 1.000, mas tem que ser agora, entendeu seu italiano burro, tem que pagar agora, senão nós vamos te pegar, te botar no porta-mala e vamos encher a tua barriga de tiros!”. Eu fico com muito medo, chamo a Margarida, a minha namorada, peço para o Júlio, esposo da Barbara, ele também da Ong, para trabalhar como meu guarda costas por um dia.
Vamos fazer a denúncia. O inspetor se chama “Pena” e é gentil e irônico. “Escuta – me diz – deve ser alguém da favela onde você trabalha, que entregou teu numero para esses caras. Eles ligam da cadeia, de Bangu. Na cadeia não tem como saber de quem é o celular que ligou, por que os celulares passam pela mão de 20 ou 30 pessoas na cela. A conta corrente que te entregaram é de Bangu, e pertence a essa moça” e mostra para mim a foto de uma mulher gorda, preta, de 30 anos, talvez menos.
“Há quanto tempo que você está no Brasil?”
“Um ano e meio”
“Então, você ainda não conhece bem o Rio de Janeiro. Estas coisas nessa cidade acontecem, infelizmente são a nossa rotina”.
2.
Depois, um dia, voltando de uma aula na TIM da Barra da Tijuca, pego o ônibus errado, que vai para a Tijuca, cheia de favelas. Dois caras sobem no ônibus, pela parte de trás, um começa andar para frente e para trás, o outro senta no fundo. Os dois tem olhos de drogados. O cara que estava andando, depois de um tempo senta perto de mim, e me ouve falar italiano com a Barbara, a chefe da nossa Ong. Passam-se 15 minutos e 6 carros da polícia param o ônibus, entram 7 ou 8 policiais, com metralhadoras nas mãos, apontam as armas contra os dois, que ficam com a cara no chão. Os policiais os levam para fora do ônibus. “Desculpem, gente boa, pelo transtorno” fala o chefe descendo.
Nós passageiros ficamos de mãos levantadas, os policiais pediam nossos documentos, o meu coração batia sem parar, “O que é que eu estou fazendo aqui!” falei pra mim, silenciosamente, com muito, muito medo. Disse para mim que era estranho eu pensar nisso naquele momento, mas pensei: “Na Europa tudo mundo tem que ter medo de uma bomba de Al Qaeda, na Ásia vários povos tem medo de uma bomba dos Estados Unidos, no Rio de Janeiro uma das mortes mais prováveis é por causa de um tiro. Esta cidade tão linda e fascinante é ao mesmo tempo sombria e perigosa. Os morros, como numa tela de um grande pintor, perfeitamente dividem a orla do mar e os moradores da classe média convivem com os seus conterrâneos pobres e às vezes desesperados. As duas almas de Rio de Janeiro, a branca e a preta, que estão tão perto uma da outra e tão distantes nas possibilidades cotidianas de vida, se encontram sobre um ônibus numa esquina da cidade, para reequilibrar-se. Encontram-se para afirmar, mais uma vez, que estão divididas por uma pistola, uma ameaça, um pedido desesperado de ajuda, uma ferida que não sutura”.
3.
Poucos dias antes da Barbara ir embora para a Itália, estamos andando na favela, talvez para nos despedir. Eu, Barbara, Júlio, Francesco e Arianna, que são dois italianos, ele psicólogo, ela jornalista. Estamos em cima do morro, na nossa linda, linda creche, único lugar onde eu sinto que estou em casa. De repente ouvimos um tiro. Só um tiro.
5 minutos depois uma das mulheres da nossa Ong chega chorando, “Mataram um bandido, um traficante, na laje da minha casa, ele tinha invadido a minha laje”. Por causa do perigo decidimos desistir do nosso passeio na favela. É uns dos meus passeios preferidos, visitar a favela, de cima para baixo. Desistimos e decidimos descer. 15 metros depois nós encontramos mais uma mulher da nossa Ong. Ela também está chorando, desesperada. “O homem está ali, no meio do caminho”. Mais uma viela e encontramos o homem. Deitado. Morto. Nós continuamos a descer em fila. Júlio, eu, Francesco, Arianna e Barbara que na realidade queria ficar na frente, para evitar que um policial pensasse que Julio fosse um bandido, e atirasse nele.
No domingo seguinte, poucas horas antes de partir, Barbara me diz: “Você se lembra da cor da pele do homem morto?”
“Eu me lembro que era branco” eu respondo.
“É incrível por que eu também o lembro branco, mas ao contrário ele era preto, preto mesmo. Imagina quanto sangue deve ter perdido para parecer branco. Foi morto por um policial escondido no mato. Com um tiro só”.
Nós falamos um pouco, descendo o morro. Depois eu, Francesco e Arianna deixamos a favela, juntos. E nos despedimos no Leblon, eu vou de ônibus até Copacabana onde pego o metrô. E mais uma vez angústias cariocas me invadem, me pega toda a angústia de morar numa cidade maluca, esquizofrênica. O metrô é de fato mais limpo e ordenado e organizado do que o metrô de Milão o do que o de Roma. Mais poucos minutos, uma meia hora antes, eu estava na favela da Rocinha e muito perto de mim um traficante foi morto por um tiro na cabeça. Por um tiro só.
Matteo Gennari
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